Em plena pandemia, Portugal é palco de um fenómeno no Instagram, iniciado por Bruno Nogueira, um humorista que se revela tão autêntico como inteligente. Desde meados de Março, com o início da quarentena, que Bruno Nogueira fez lives na sua conta de instagram, de segunda a sexta, das 23h à 01h.
Conversa com diversas referências da cultura portuguesa, uns mais conhecidos do que outros, mas, sobretudo, conversa com amigos, os seus amigos.
E de um começo simples, sem qualquer tipo de presunção, consegue dar corpo, crescer e atingir, no seu último direto anunciado para 15 de maio, o singelo número de 170 mil visualizadores simultâneos.
Uma ação sem qualquer tipo de precedentes sobre a qual decidimos fazer o exercício de análise numa perspetiva estratégica, quanto à ideia-base, aos conteúdos, ao ambiente digital e ao contributo para a vivência da comunidade. E decidimos partilhá-lo convosco.
A autenticidade do Bruno
Esta é, para nós, a chave para este fenómeno. O Bruno Nogueira é um humorista que se revela autêntico no que diz, no que sente e no que faz. Não tem papas na língua nem é politicamente correto, mas tem um nível de empatia, clareza e amizade muito grandes.
E quando começa os seus lives enquanto exercício catártico, para “ter conversas com adultos” e desanuviar do dia-a-dia intenso com as filhas — a mulher estava fora do país —, o Bruno convida amigos e fala com eles como se ninguém estivesse a ver.
O Bruno é fiel a si mesmo e à sua vontade, sem pretensões de ali construir um palco.
O Bruno é autêntico. E, da perspetiva do marketing, este revela-se sempre um dos maiores desafios — como fazer com que uma marca tenha uma personalidade e seja autêntica. Só por isso, já é uma referência a manter.
O público do Bruno
Se pensarmos no Bruno Nogueira, no seu percurso e na maneira inteligente como faz humor, conseguimos certamente perceber que aqueles que o acompanham desde adolescentes e jovens-adultos pertencem à geração nascida nos anos 80-90.
São os que, na sua adolescência, o acompanharam no Curto-Circuito da SIC Radical, depois se rasgaram a rir com o Último a Sair e, agora, o acompanham no Instagram diariamente. É uma geração que também se identifica com o Nuno Markl e a sua ávida fixação por Star Wars e Legos. Há um posicionamento vincado que é, sobretudo, geracional.
São duas pessoas que muitos gostariam de ter no seu círculo de amigos. Não pela fama que têm, mas pelo que têm vindo a revelar ser ao longo da vida.
Juntando ao facto de toda a população estar em casa, com tempo disponível e necessidade de entretenimento, a receita não é difícil.
Os amigos do Bruno
Para além de Nuno Markl, que já referimos e que foi companhia essencial nesta aventura (como em tantas outras), o Bruno Nogueira chamou para estas 2 horas de conversa diárias amigos e conhecidos que são referência na cultura em Portugal.
Nuno Lopes, João Quadros, Gonçalo Waddington são exemplos de amigos próximos de Bruno que nos divertiram ao longo de 2 meses.
Eunice Muñoz, Rita Blanco ou Vhils são referências incríveis que também nos presentearam com a sua companhia, nos seus telemóveis, a partir das suas casas.
Todos estes, pelo seu trabalho e percurso, trazem com eles também um público, mais ou menos distinto, e que permite a estas conversas ganhar alguma amplitude de idades e interesses.
Confinados a socializar no digital
É isto. Temos estado confinados em casa. Sem concertos nem cinema. E a procurar socializar com amigos e família através dos meios digitais. Os lives do Bruno Nogueira são conteúdo de entretenimento muito bem conseguido também por algumas razões técnicas:
- Proximidade: como já referimos, todas as pessoas convidadas para conversar são referências para a maioria da população portuguesa e, por outro lado, sentir estas referências num mesmo patamar que o nosso, na possibilidade de comentar e interagir, faz-nos percepcionar sempre uma semelhança;
- Imprevisibilidade: apesar de ter escalado para um conteúdo com genérico (feito pelo Dillaz), com nome “Como é que o Bicho Mexe?”, com Markl a cantar e um final sempre delicioso (um aplauso audível ao Filipe Melo), todos os dias eram diferentes. Nunca se sabia bem quem encontraríamos e sobre que temas se falaria. A curiosidade e o receio de perder o fio à meada são triggers bem utilizados;
- Temas “não-pandemia”: os nossos feeds encheram-se de notícias, números e testemunhos sobre a pandemia e a Covid-19. A necessidade que o público tem de gerir emocionalmente o confinamento resultava sempre numa procura por conteúdo diferente, próximo de uma normalidade distante e de alguma evasão ao dia-a-dia. O Bruno fê-lo muito bem na fuga ao tema, apesar de partilhar sempre uma ou outra experiência do seu dia;
- Exclusividade: os lives no Instagram podem, no fim, ser partilhados durante 24h para quem os quiser ver depois. Mas o Bruno trabalhou de forma muito inteligente esta questão, não partilhando e apelando, com sucesso, a que as pessoas não os gravassem e replicassem noutros canais, como o Youtube. Torna este momento diário exclusivo e, mais uma vez, consegue outro trigger que o transforma num conteúdo apetecível.
Obrigado, Bruno, por nos mostrares para que pagamos internet.
No dia 15 de Maio, todos percebemos por que razão a internet existe e a pagamos — para continuarmos próximos quando fisicamente não podemos, para nos unirmos, para construirmos comunidade.
Para o último dia, Bruno Nogueira decide lançar o desafio que tem tanto de aleatório como de simbólico, de voltarmos a ir buscar as luzes e a árvore de Natal e de recuperarmos o espírito natalício na nossa casa. Sai com o Markl de carro, rumo a um destino inicialmente desconhecido do público, e o que sucede ao longo dessas 2 horas é toda a exteriorização da emoção vivida em 2 meses de conversa com uma comunidade que viveu uma quarentena a olhar para o telemóvel.
São pessoas à varanda a acenar, a aplaudir, a agradecer; são pessoas dentro de automóveis a acompanhar esta viagem em marcha quase lenta.
Quem viu percebeu o nível da intensidade emocional do Bruno e do Markl ao longo do percurso, o rebuliço de emoções, o risco e a probabilidade de as pessoas se deixarem levar e não cumprirem o distanciamento físico. Quem viu percebeu o caos que se foi gerando com a emoção que, neste 15 de maio, decidiu sair à rua, ganhar voz e rosto.
Não vivemos tempos fáceis. Apelar ao espírito de comunidade e união é um desafio enorme de empatia que poucos conseguem resolver.
E o Bruno conseguiu-o, arriscamos dizer, sem saber muito bem porquê. Mas nós sabemos. Porque foi autêntico e porque as pessoas o acompanham por ele ser exatamente isso — ele próprio. E é assim que as marcas se devem comportar procurando sempre este incrível exercício de autoconhecimento, resiliência e empatia.
Uma ação sem precedentes
Não temos conhecimento de iniciativas semelhantes ou que tenham atingido, em proporção à dimensão do nosso país, números como os do dia 15 de Maio.
Prevemos que este caminho que o Bruno Nogueira abriu vá suscitar, nas marcas e nas empresas, a procura por algo parecido na esperança de um mesmo retorno, por perceberem que o consumidor adere quando o conteúdo é relevante. Mas, como vimos neste exemplo, o conteúdo — arriscamos novamente dizer — é o que menos interessa.
E, tal como vimos, não há forma de replicar o que o Bruno fez.
Mas há, sem dúvida, uma reflexão a fazer sobretudo no quão forte consegue ser um produto, uma marca ou uma pessoa quando é autêntica.
Créditos fotográficos:
Capa: Ana Baião
Outras: José Sena Goulão